A Foz do rio Doce, no norte do Espírito Santo, ganha a devida valorização com a criação da Área de Proteção Ambiental – APA de mesmo nome.
O legado que fica vai além do Decreto assinado pelo presidente Lula hoje (dia 03 de junho), criando esta importantíssma unidade de conservação federal (UC) – com 45.417 hectares de área protegida. A cerimônia de assinatura contou com a presença da Ministra de Meio Ambiente e Mudança do Clima Marina Silva, o presidente do ICMBio Mauro Pires e todo o staff técnico do MMA e ICMBio que trabalharam arduamente na proposta. O ICMBio – órgão gestor da nova APA – e as outras instituições que atuam na região terão a responsabilidade de garantir um legado socioambiental de desenvolvimento sustentável após o desastre ambiental com a chegada da “lama” da Samarco” em 2015 e com repercussões até os dias de hoje.
Diversas espécies ameaçadas passam a ser ainda mais protegidas a partir da criação da APA, como a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) que tem sua principal área de desova no Brasil nas praias ao sul e ao norte da foz do rio Doce; e a tartaruga-cabeçuda (Caretta Caretta). Recentemente o ICMBio publicou o Plano de Ação para a Conservação das Tartarugas Marinhas – PAN Tartarugas Marinhas que prevê, no período de 5 anos, uma série de ações voltadas para a conservação das cinco espécies de tartarugas marinhas ameaçadas de extinção, sendo a tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea) classificada no Brasil como ‘Criticamente ameaçada de extinção’.
A riqueza se estende pela presença da toninha (Pontoporia blainvillei) na área marinha da APA, considerada o mamífero marinho mais ameaçado de extinção no Brasil. A região é, ainda, ponto de concentração das baleias Jubarte (Megaptera novaeangliae), bem como de dezenas de espécies de peixes e de camarão, de valor econômico e cultural para as comunidades pesqueiras tradicionais da região, bem como para as frotas pesqueiras comerciais do Espírito Santo e de outros estados.
Após etapas como o estudo detalhado da área, análise técnica por parte do ICMBio e a realização de consultas públicas – duas consultas voltadas para toda a população interessada, em Linhares, Aracruz, e duas voltadas para as comunidades tradicionais: quilombola de Degredo e indígena de Comboios – finalmente ocorre o reconhecimento oficial da importância de proteção especial para essa rica biodiversidade.
A APA é, segundo a Lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação-SNUC nº 9.985/2000, uma categoria de unidade considerada “de Uso Sustentável”, tendo como objetivos básicos proteger a diversidade biológica, disciplinar o processo de ocupação e assegurar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais.
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Toninha (Pontoporia blainvillei)
Assim, atividades tradicionais no território, como a pesca, o cultivo do cacau sombreado e o turismo, seguirão existindo, com a premissa básica de conservar os recursos para as gerações futuras. Esta categoria de unidade de conservação não demanda desapropriações, uma vez que os proprietários de áreas continuam com posse e domínio de suas terras.
Durante as consultas e reuniões, representantes das comunidades fizeram sugestões e cobranças. Por exemplo o pescador de linha de barranco, plantador de cacau e criador de animais na localidade de Entre Rios, que ficará no limite da APA, Sebastião Eugênio Dias, recorda as lutas de sua comunidade: “Assim como outros moradores de Entre Rios, luto há mais de 16 anos pelo reconhecimento da titularidade de minha terra, para ter acesso a benefícios como energia”.
Na consulta pública no Degredo, além de aprovarem por unanimidade a proposta de criação da APA, os participantes fizeram sugestões para a gestão, sempre no sentido de estreitar o diálogo e os acordos entre ICMBio e população local. As sugestões incluíram mudanças no período de defeso de algumas espécies, além de apoio em ações de geração de renda local.
Para a comunitária Luciana Souza de Oliveira, de Regência, a APA vai trazer benefícios. Filha de pescador e nativa de Regência, tendo sido técnica de enfermagem e professora na comunidade, tem toda uma vivência como liderança nos movimentos sociais na vila. “A APA e sua criação ressurge com força após o rompimento da barragem, mas ela antecede em muito tempo antes”, contextualiza ela.
Conflitos passados levaram a se levantar a importância de uma área protegida que resguardasse os conhecimentos e modos de vida tradicionais da região. “Mas como tudo é um processo burocrático, o tempo foi passando, o desastre ambiental aconteceu e a necessidade de proteger a área se tornou ainda maior”, explica Luciana.
Luciana representa a comunidade de atingidos por barragens de Entre Rios e Regência Augusta, na Câmara Técnica de Participação, Diálogo e Controle Social (CTDPCS), criada após o desastre ambiental da Samarco/Vale/BHP; além de ser suplente na Câmara Técnica de Economia e Inovação (CTEI) e membro da Rede Vozes Negras pelo Clima – iniciativa de 11 mulheres negras que lutam por uma justiça climática antirracista. “A APA vai resguardar o conhecimento tradicional e a sustentabilidade da pesca”, afirma.
“O predadorismo é crescente, e as ameaças não apenas às áreas de pesca, mas também às áreas de matas como as cabrucas (de plantio de cacau). E tudo se torna ainda mais grave e maior com os problemas climáticos e aquecimento global. Precisamos resguardar nossos direitos e resguardar os nossos conhecimentos ancestrais”, enfatiza Luciana.
A comunitária lembra a importância do conselho da APA, que precisará refletir ao máximo a pluralidade da região. “O povo ainda sente o receio de que o conselho a ser criado seja uma instância mandatória do ICMBio sobre a comunidade. Mas o diálogo está sendo construído dia a dia e o conselho irá refletir a comunidade e seus interesses. E nesse sentido a transparência da informação é tudo, assim como o direito ao debate e à construção. Não existe isso de que o governo ‘vai mandar’ e a comunidade ‘vai ser comandada’”, explica ela sobre o processo de construção local.
Como explica o analista ambiental e coordenador substituto da Coordenação de Criação de Unidades de Conservação do ICMBio, Aldízio Lima de Oliveira Filho, o Conselho Consultivo é uma instância muito importante tendo em vista que é a representação da sociedade na gestão da unidade de conservação.
“O ICMBio busca agilizar a criação do conselho da forma mais rápida possível. No entanto, tal formação do conselho é um processo que inclui capacitações dos futuros conselheiros, o que pode demandar um tempo um pouco maior para o seu estabelecimento”, explica Aldízio. Como a comunidade tem experiência no Conselho da Reserva Biológica de Comboios, o processo pode ser mais fácil.
Ele lembra ainda que a biodiversidade da Foz do Rio Doce tem a sua importância reconhecida em diversos planos de ação para proteção de espécies ameaçadas (tartarugas marinhas, toninhas, mamíferos marinhos, aves marinhas e peixes, entre outras). A proteção dessas espécies precisa andar junto com a qualidade de vida das pessoas que vivem e utilizam aquele território. “Já era premente a necessidade de proteção dos modos de vida dos pescadores artesanais existentes na região, bem como do potencial turístico da área, já representado por diversos estabelecimentos existentes nas vilas de Regência e Povoação”, destaca Aldízio.
A maior parte da área da APA é marinha, e um dos seus objetivos é o ordenamento da pesca na região, propiciando, dessa forma, o uso sustentável dos recursos naturais da área. “A dinâmica do litoral sofre influências de diversas ações, inclusive de fora da área da unidade de conservação. Mas a criação da UC vem oferecer, aos moradores locais, ferramentas que possibilitem minimizar possíveis impactos advindos dessas ações”, esclarece Aldízio.
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Festa tradicional do Caboclo Bernardo atrai turistas todos os anos.
O receio das comunidades – e que foi sendo esclarecido ao longo de todo o processo de criação da APA – era de que a pesca, atividade tradicional exercida por diversas famílias, fosse proibida. Mas a categoria APA garante a manutenção das formas de vida e atividades anteriormente exercidas pelas comunidades.
O foco, segundo informado pelo chefe da Reserva Biológica de Comboios, Antônio de Pádua, em uma das consultas públicas realizada em Degredo, Linhares-ES, em outubro de 2023, foi exatamente “preservar a cultura tradicional da pesca nas comunidades locais”.
Potenciais – A região da foz do rio Doce abriga dezenas de espécies com importância econômica para as comunidades existentes na área, entre peixes e camarões – importantes fonte de renda e alimentação, além de fazerem parte da culinária tradicional local. Com a criação da APA, a gestão e ordenamento pesqueiro, segundo a realidade e características locais, serão importantes estratégias, por meio dos chamados PGL – Plano de Gestão Local, construídos pelas comunidades, técnicos e aprovados no conselho da unidade, contribuindo para uma pesca cada vez mais sustentável.
O turismo na região deverá receber um incremento, a partir da criação da APA, pela conservação cada vez maior dos atrativos naturais. Atividades como surfe, passeios de barco e caiaque, observação de tartarugas marinhas e trilhas no ambiente de restinga serão atrativos mais divulgados.
Festas tradicionais como a do Caboclo Bernardo e as tradicionais Derrubadas de Mastro deverão ser cada vez mais divulgadas, levando a cultura e gastronomia locais para conhecimento de todos que vierem conhecer as belezas da região.